“ Para Luís Costa
O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser
pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria, onde a elegância
dos doentes os transforma em reis. Numa das últimas vezes que lá fui encontrei
um homem que conheço há muitos anos. Estava tão magro que demorei a perceber
quem era. Disse-me
- Abrace-me porque é o último abraço que me dá
durante o abraço
- Tenho muita pena de não acabar a tese de
doutoramento
e, ao afastarmo-nos, sorriu. Nunca vi um sorriso com
tanta dor entre parêntesis, nunca imaginei que fosse tão bonito.
Com o meu corpo contra o dele veio-me à cabeça,
instantâneo, o fragmento de um poema do meu amigo Alexandre O'Neill, que diz
que apenas entre os homens, e por eles, vale a pena viver. E descobri-me cheio
de respeito e amor. Um rapaz, de cerca de vinte anos, que fazia quimioterapia
ao pé de mim, numa determinação tranquila:
- Estou aqui para lutar
e, por estranho que pareça, havia alegria em cada
gesto seu. Achei nele o medo também, mais do que o medo, o terror e, ao mesmo
tempo que o terror, a coragem e a esperança.
A extraordinária delicadeza e atenção dos médicos, dos
enfermeiros, comoveu-me. Tropecei no desespero, no mal-estar físico, na
presença da morte, na surpresa da dor, na horrível solidão da proximidade do
fim, que se me afigura de uma injustiça intolerável. Não fomos feitos para
isto, fomos feitos para a vida. O cabelo cresce-me de novo, acho-me,
fisicamente, como antes, estou a acabar o livro e o meu pensamento desvia-se
constantemente para a voz de um homem no meu ouvido
- Acabar a tese de doutoramento, acabar a tese de
doutoramento, acabar a tese de doutoramento
porque não aceito a aceitação, porque não aceito a
crueldade, porque não aceito que destruam companheiros. A rapariga com a peruca
no braço da cadeira. O senhor que não olhava para ninguém, olhava para o vazio.
Ali, na sala de quimioterapia, jamais escutei um gemido, jamais vi uma lágrima.
Somente feições sérias, de uma seriedade que não topei em mais parte alguma,
rostos com o mundo inteiro em cada prega, traços esculpidos a fogo na pele. Vi
morrer gente quando era médico, vi morrer gente na guerra, e continuo sem
compreender. Isso eu sei que não compreenderei. Que me espanta. Que me faz
zangar. Abrace-me porque é o último abraço que me dá: é uma frase que se
entenda, esta? Morreu há muito pouco tempo. Foda-se. Perdoem esta palavra mas é
a única que me sai. Foda-se. Quando eu era pequeno ninguém morria. Porque carga
de água se morre agora, pelo simples facto de eu ter crescido? Morra um homem
fique fama, declaravam os contrabandistas da raia. Se tivermos sorte alguém se
lembrará de nós com saudade. De mim ficarão os livros. E depois? Tolstoi, no
seu diário: sou o melhor; e depois? E depois nada porque a fama é nada.
O que é muito mais do que nada são estas criaturas
feridas, a recordação profundamente lancinante de uma peruca de mulher num
braço de cadeira. Se eu estivesse ali sozinho, sem ninguém a ver-me, acariciava
uma daquelas madeixas horas sem fim. No termo das sessões de quimioterapia as
pessoas vão-se embora. Ao desaparecerem na porta penso: o que farão agora? E
apetece-me ir com eles, impedir que lhes façam mal:
- Abrace-me porque talvez não seja o último abraço que
me dá.
Ao M. foi. E pode afigurar-se estranho mas ainda o
trago na pele. Durante quanto tempo vou ficar com ele tatuado? O lugar onde,
até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do
Hospital de Santa Maria onde a dignidade dos escravos da doença os transforma
em gigantes, onde só existem, nas palavras do Luís, Heróis.
Onde
só existem Heróis. Não estou doente agora. Não sei se voltarei a estar. Se
voltar a estar, embora não chegue aos calcanhares de herói algum, espero
comportar-me como um homem. Oxalá o consiga. Como escreveu Torga o destino
destina mas o resto é comigo. E é. Muito boa tarde a todos e as melhoras: é
assim que se despedem no Serviço de Oncologia. Muito boa tarde a todos e até
já, mesmo que seja o último abraço que damos."
Autor: António Lobo Antunes
2 comentários:
Lindo, lindo.
Comoventes estas tuas palavras, nem sei que mais hei-de acrescentar.
Admiro quem visita estes doentes e a dor que devem sentir por se sentirem impotentes por não poderem fazer nada.
Beijos Katya
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